Prova
da UERJ -2014
Fotojornalismo
Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do irreparável
desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores de artigos e notícias,
já sentimos que nos falta o solo debaixo dos pés… Um exército rival vem
solapando os alicerces em que até agora assentava a nossa supremacia: é o
exército dos desenhistas, dos caricaturistas e dos ilustradores. O lápis
destronará a pena: ceci tuera cela¹.
O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite
leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa
espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela será arrebatado,
esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder. A eletricidade já
suprimiu as distâncias: daqui a pouco, quando um europeu espirrar, ouvirá
incontinenti² o “Deus te ajude” de um
americano. E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e
apressar a vida por forma tal que os homens já nascerão com dezoito anos, aptos
e armados para todas as batalhas da existência.
Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às
ilustrações copiosas, que entram pelos olhos da gente com uma insistência
assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda
a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos
alegres e casos tristes.
É provável que o jornal-modelo do século 20 seja um imenso
animatógrafo³ , por cuja tela vasta passem reproduzidos, instantaneamente,
todos os incidentes da vida cotidiana. Direis que as ilustrações, sem palavras
que as expliquem, não poderão doutrinar as massas nem fazer uma propaganda
eficaz desta ou daquela ideia política. Puro engano. Haverá ilustradores para a
sátira, ilustradores para a piedade.
(...) Demais, nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone
de voz tonitruosa4, encarregado de berrar ao céu e à terra o
comentário, grave ou picante, das fotografias.
E convenhamos que, no dia em que nós, cronistas e noticiaristas,
houvermos desaparecido da
cena – nem por isso se subverterá a ordem social. As palavras são
traidoras, e a fotografia é fiel.
A pena nem sempre é ajudada pela inteligência; ao passo que a máquina
fotográfica funciona sempre sob a égide5 da soberana Verdade, a
coberto das inumeráveis ciladas da Mentira, do Equívoco e da Miopia
intelectual. Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias…
(...)
Não insistamos sobre os benefícios da grande revolução que a
fotogravura vem fazer no jornalismo. Frisemos apenas este ponto: o
jornal-animatógrafo terá a utilidade de evitar que nossas opiniões fiquem, como
atualmente ficam, fixadas e conservadas eternamente, para gáudio6 dos
inimigos… Qual de vós, irmãos, não escreve todos os dias quatro ou cinco
tolices que desejariam ver apagadas ou extintas? Mas, ai! de todos nós! Não há
morte para as nossas tolices! Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais,
elas ficam (...) catalogadas.
(...)
No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a revolução, que vai ser
a nossa morte e a opulência7 dos que sabem desenhar. Preparemo-nos para morrer,
irmãos, sem lamentações ridículas, aceitando resignadamente a fatalidade das
coisas, e consolando-nos uns aos outros com a cortesia de que, ao menos, não
mais seremos obrigados a escrever barbaridades… Saudemos a nova era da
imprensa! A revolução tira-nos o pão da boca, mas deixa-nos aliviada a
consciência.
Olavo Bilac Gazeta de Notícias, 3/0 / 1901
1 ceci tuera cela − isto vai matar aquilo
2 incontinenti − sem demora
3 animatógrafo − aparelho que passa imagens
sequenciais
4 tonitruosa − com o volume alto
5 égide – proteção
6 gáudio − alegria extremada
7 opulência − riqueza, grandeza
Questão 01 Já em 1901, o escritor Olavo Bilac temia
que a imagem substituísse a escrita. No entanto, ele reconhecia aspectos
positivos dessa possível substituição. Um desses aspectos é observado no
seguinte trecho:
(A) O século não tem tempo a perder. (l. 8-9)
(B) Já ninguém mais lê artigos. (l. 13)
(C) aceitando resignadamente a fatalidade das
coisas, (l. 36)
(D) não mais seremos obrigados a escrever
barbaridades... (l. 37)
Questão 02 Vem perto o dia em que soará para os
escritores a hora do irreparável desastre e da derradeira desgraça. (l.1-2)
A profecia para os escritores, anunciada na
primeira frase do texto de forma extremamente negativa, se opõe ao tom e à
conclusão do texto. Considerando esse contraste, o texto de Bilac pode ser
qualificado basicamente como:
(A) irônico
(B) incoerente
(C) contraditório
(D) ultrapassado
Questão 03 O texto, apesar de escrito no início do
século XX, demonstra surpreendente atualidade, conferida sobretudo por uma
semelhança entre a vida moderna da época e a experiência contemporânea. Essa
semelhança está exemplificada na passagem apresentada em:
(A) O público tem pressa. (l. 6)
(B) As palavras são traidoras, e a fotografia é
fiel. (l. 24)
(C) Não há morte para as nossas tolices! (l. 32-33)
(D) Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais,
elas ficam (...) catalogadas. (l. 33)
Questão 04 O cinema se popularizou no Brasil depois
de esta crônica ter sido escrita. Nela, porém, o autor já antecipa o advento do
novo meio de comunicação. Um trecho que comprova tal afirmativa é:
(A) E ainda a ciência humana há de achar o meio de
simplificar e apressar a vida (l. 10-11)
(B) toda a explicação vem da gravura, que conta
conflitos e mortes, (l. 14-15)
(C) nada impede que seja anexado ao animatógrafo um
gramofone de voz tonitruosa, (l. 21) (D) a máquina fotográfica funciona sempre
sob a égide da soberana Verdade, (l. 25-26)
Questão 05 Vereis que não hão de ser tão frequentes
as controvérsias… (l. 27) A previsão de Bilac sobre a diminuição das
controvérsias ou polêmicas, por causa da vitória da imagem sobre a palavra,
baseia-se em uma pressuposição acerca da maneira de representar a realidade.
Essa pressuposição está enunciada em:
(A) o desenho critica o real e as palavras expressam
consciência
(B) a fotografia reproduz o real e as palavras
provocam distorções
(C) a imagem interpreta o real e as palavras
precisam de inteligência
(D) a fotogravura subverte o real e as palavras
tendem ao conservadorismo
Porque a realidade é inverossímil
Escusando-me1 por repetir truísmo2
tão martelado, mas movido pelo conhecimento de que os truísmos são parte
inseparável da boa retórica narrativa, até porque a maior parte das pessoas não
sabe ler e é no fundo muito ignorante, rol no qual incluo arbitrariamente você,
repito o que tantos já dizem e vivem repetindo, como quem usa chupetas: a
realidade é, sim, muitíssimo mais inacreditável do que qualquer ficção, pois
esta requer uma certa arrumação falaciosa3 , a que a maioria dá o
nome de verossimilhança. Mas ocorre precisamente o oposto. Lê-se ficção para
fortalecer a noção estúpida de que há sentido, lógica, causa e efeito lineares
e outros adereços que integrariam a vida. Lê-se ficção, ou mesmo livros de
historiadores ou jornalistas, por insegurança, porque o absurdo da vida é
insuportável para a vastidão dos desvalidos que povoa a Terra.
João Ubaldo Ribeiro Diário do Farol. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
1 escusando-me −
desculpando-me
2 truísmo − verdade
trivial, lugar comum
3 falaciosa −
enganosa, ilusória
Questão 06 O título do texto soa contraditório, se
a verossimilhança for tomada como uma semelhança com o mundo real, com aquilo
que se conhece e se compreende. Essa contradição se desfaz porque, na
interpretação do autor, a ficção organiza elementos da vida, enquanto a
realidade é considerada como:
(A) linear
(B) absurda
(C) estúpida
(D) falaciosa
Questão 07 Para justificar a repetição de algo já
conhecido, o autor se baseia na relação que mantém com os leitores. Com base no
texto, é possível perceber que essa relação se caracteriza genericamente pela:
(A) insegurança do autor
(B) imparcialidade do autor
(C) intolerância dos leitores
(D) inferioridade dos leitores
Questão 08 “os truísmos são parte inseparável da
boa retórica narrativa, até porque a maior parte das pessoas não sabe ler” (l.
1-3)
O narrador justifica a necessidade de truísmos pela
dificuldade de leitura da maior parte das pessoas. Encontra-se implícita no
argumento a noção de que o leitor iniciante lê melhor se:
(A) estuda autores clássicos
(B) conhece técnicas literárias
(C) identifica ideias conhecidas
(D) procura textos recomendados
Questão 09 O sentido da charge se constrói a partir
da ambiguidade de determinado termo. O termo em questão é:
(A) fora
B) agora
(C) sistema
(D) protestar
Questão 10 A disposição dos manifestantes contrasta
com a atitude do homem de terno e gravata. Essa atitude, no que diz respeito ao
uso da linguagem, caracteriza-se por:
(A) falsa indignação
(B) pouca formalidade
(C) clara agressividade
(D) muita subjetividade
A namorada
Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por um
cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da
goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.
Manoel de Barros Poesia completa. São Paulo: Leya,
2010.
Questão 11
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça. (v. 2-4)
O primeiro verso estabelece mesma relação de
sentido com cada um dos dois outros versos. Um conectivo que expressa essa
relação é:
(A) porém
(B) porque
(C) embora
(D) portanto
Questão 12 O pai era uma onça. (v. 4) Nesse verso,
a palavra onça está empregada em um sentido que se define como:
(A) enfático
(B) antitético
(C) metafórico
(D) metonímico
O tempo
em que o mundo tinha a nossa idade
Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos
improvisos. As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior
que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe apagava a boca antes do
desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu corpo dorminhoso. Não lhe deitávamos
dentro da casa: ele sempre recusara cama feita. Seu conceito era que a morte
nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão,
lugar onde a chuva também gosta de deitar. Nós simplesmente lhe encostávamos na
parede da casa. Ali ficava até de manhã. Lhe encontrávamos coberto de formigas.
Parece que os insectos gostavam do suor docicado do velho Taímo. Ele nem sentia
o corrupio do formigueiro em sua pele.
− Chiças: transpiro mais que palmeira!
Proferia tontices enquanto ia acordando. Nós lhe sacudíamos os
infatigáveis bichos. Taímo nos sacudia a nós, incomodado por lhe dedicarmos
cuidados.
Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como
dormia fora, nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava:
− Venham: papá teve um sonho!
E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe
tinham sido reveladas. Taímo recebia notícia do futuro por via dos
antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar nenhuma. Eu
me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele
era.
− Nem duvidem, avisava mamã, suspeitando-nos.
E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo
tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais
velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. (...)
Mia Couto
Terra sonâmbula. São Paulo, Cia das Letras, 2007.
Questão 13
Este texto é uma narrativa ficcional que se refere à própria ficção, o
que caracteriza uma espécie de metalinguagem.
A metalinguagem está melhor explicitada no seguinte trecho:
(A) As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior
que o mundo. (l. 1-2)
(B) Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos.
(l. 12)
(C) E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe
tinham sido reveladas. (l. 15)
(D) Nesses anos ainda tudo tinha sentido: (l. 20)
Questão 14
A escrita literária de Mia Couto explora diversas camadas da linguagem:
vocabulário, construções sintáticas, sonoridade.
O exemplo em que ocorre claramente exploração da sonoridade das
palavras é:
(A) Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos
improvisos. (l. 1)
(B) Não lhe deitávamos dentro da casa: ele sempre recusara cama feita.
(l. 4)
(C) Ele nem sentia o corrupio do formigueiro em sua pele. (l. 8)
(D) Nós lhe sacudíamos os infatigáveis bichos. (l. 10)
Questão 15
Um elemento importante na organização do texto é o uso de algumas
personificações.
Uma dessas personificações encontra-se em:
(A) Éramos nós que recolhíamos seu corpo dorminhoso. (l. 3)
(B) Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de
uma esteira. (l. 4-5)
(C) Nós lhe sacudíamos os infatigáveis bichos. (l. 10)
(D) Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. (l. 21-22)
Questão 16
Ao dizer que o pai sofria de sonhos (l. 12) e não que ele sonhava, o
autor altera o significado corrente do ato de sonhar.
Este novo significado sugere que o sonho tem o poder de:
(A) distrair
(B) acalmar
(C) informar
(D) perturbar